Autores:
Carlos Henrique Rocha dos Santos
Engenheiro Geotécnico, BVP Geotecnia e Hidrotecnia, Belo Horizonte, MG, Brasil, carlos.santos@bvp.eng.br
Thiago Borges Gomes Moreira
Gerente Técnico, BVP Geotecnia e Hidrotecnia, Belo Horizonte, MG, Brasil, thiago.moreira@bvp.eng.br
Custódio Junio Reis
Analista de Engenharia, BVP Geotecnia e Hidrotecnia, Belo Horizonte, MG, Brasil, custodio.reis@bvp.eng.br
RESUMO: A definição de parâmetros de resistência ao cisalhamento dos solos é uma atividade fundamental no desenvolvimento de projetos geotécnicos, em especial, aqueles que envolvem barragens. As diretrizes normativas atuais estabelecem a obrigatoriedade da interpretação de ensaios geotécnicos de campo e de laboratório para a parametrização dos materiais que constituem o modelo geológico-geotécnico do maciço e
da fundação. Contudo, em razão da heterogeneidade dos materiais naturais e das divergências que os resultados dos ensaios podem apresentar, a utilização de métodos estatísticos na definição de parâmetros de resistência ao cisalhamento passa a ser uma abordagem interessante para lidar com a variabilidade inerente a esses materiais. Diante desse contexto, o objetivo desse estudo é apresentar uma metodologia, baseada em princípios estatísticos, para a definição de parâmetros de resistência ao cisalhamento a partir de um conjunto de resultados de ensaios geotécnicos de laboratório, com foco especial aos solos naturais. A análise estatística fornece uma estrutura robusta para lidar com incertezas e variabilidades nos resultados dos ensaios geotécnicos, contribuindo para uma definição mais confiável dos parâmetros de resistência ao cisalhamento dos solos. Como resultado da aplicação dessa metodologia, obtém-se resultados que consideram a heterogeneidade dos materiais, permitindo a identificação e eliminação de resultados discrepantes do comportamento mecânico geral apresentado por uma determinada litologia. Outra contribuição da metodologia é a confiabilidade na definição dos parâmetros de resistência, visto que ela permite definir um intervalo de parâmetros.
PALAVRAS-CHAVE: Parâmetros Geotécnicos, Resistência ao cisalhamento, Heterogeneidade dos Solos, Ensaio Triaxial, Análise Estatística
ABSTRACT: Defining soil shear strength parameters is a fundamental activity in the development of geotechnical design, especially those involving dams. The current normative guidelines establish the mandatory interpretation of geotechnical field and laboratory tests for the parameterization of the materials that constitute the geological-geotechnical model of the backfill and foundation. However, due to the heterogeneity of natural materials and the potential variations in laboratory test results, the use of statistical techniques in the definition of shear strength parameters becomes an interesting approach to deal with the variability inherent in these materials. In this context, the aim of this study is to present a methodology, based on statistical principles, for defining shear strength parameters from a set of geotechnical laboratory test results, with a special focus on natural soils. Statistical analysis provides a robust framework for dealing with uncertainties and variability in geotechnical test results, contributing to a more reliable definition of soil shear strength parameters. As a result of applying this methodology, outcomes consider the heterogeneity of materials, enabling identification and elimination of discrepant results from the overall mechanical behavior exhibited by a specific lithology. Another significant aspect of the methodology is its reliability in defining resistance parameters, which facilitates the establishment of a range of parameters.
KEYWORDS: Geotechnical Parameters, Shear Strength, Soil Heterogeneity, Triaxial Test, Statistical Analysis
1 – INTRODUÇÃO
A definição de parâmetros de resistência ao cisalhamento, que representem de forma confiável o comportamento mecânico de um solo natural, ainda é um desafio em projetos de engenharia. Conforme apresentado por Phoon & Kulhawy (1999), os estudos para estimativa de parâmetros geotécnicos dos materiais naturais estão cercados por diversas fontes de incertezas de diferentes origens. O autor elenca três fontes principais: variabilidade inerente (natural) dos solos, erros de medição e incerteza do modelo de transformação.
A variabilidade inerente dos solos está relacionada aos processos envolvidos na sua gênese, os quais são responsáveis por gerar unidades geológicas-geotécnicas complexas que, por muitas vezes, apresentam propriedades heterogêneas em um mesmo depósito relativamente homogêneo (Phoon e Kulhawy, 1999; Beacher e Christian, 2003). O erro de medição está relacionado aos processos necessários para a
caracterização geotécnica dos materiais (amostragem, acurácia dos equipamentos, erros humanos, etc.). E a incerteza do modelo está relacionada com a precisão das correlações usadas para interpretar os dados (Phoon & Kulhawy, 1999).
O ensaio de compressão triaxial é o mais utilizado para caracterizar, em laboratório, a resistência ao cisalhamento dos solos devido à possibilidade de se controlar, no ensaio, os estados de tensão e de deformação e as condições de drenagem (Fernandes, 2016). Contudo, a base de dados provenientes deste tipo de ensaio é geralmente limitada devido aos custos envolvidos na implementação de programas de investigação. Para se obter resultados mais aderentes às condições in situ, é necessário que os resultados originais do ensaio sejam analisados por um profissional capacitado, pois se tratam de dados de entrada para uma interpretação geotécnica. Dessa forma, é fundamental a adoção de modelos ou relações teóricas para descrever adequadamente o comportamento mecânico dos solos ensaiados (Campello et al, 2019).
Neste momento, segundo Flores (2008), é contabilizada uma das maiores fontes de incerteza na engenharia geotécnica, pois os modelos adotados podem conter simplificações que limitam a representação das condições reais. Comumente, os parâmetros de resistência utilizados em análises de estabilidade determinísticas são considerados em função das tendências médias apresentadas. Contudo, conforme apresentado por Flores (2008), apenas com o uso da média não é possível considerar a variabilidade espacial das propriedades dos solos. Esta pode ser descrita em função das tendências médias e de um componente residual que relaciona os erros de medição em conjunto com a variabilidade inerente dos solos (Vanmarcke,1977 apud Flores, 2008).
Portanto, o objetivo desse estudo é apresentar uma metodologia baseada em técnicas estatísticas para a definição de parâmetros de resistência ao cisalhamento a partir de um conjunto de resultados de ensaios geotécnicos de laboratório, com foco nos solos naturais.
2 – DEFINIÇÃO DE PARÂMETROS GEOTÉCNICOS A PARTIR DE UM GRUPO DE AMOSTRAS
A metodologia proposta para definir parâmetros de resistência pode ser dividida em duas etapas: 1) avaliar os ensaios de laboratório aplicando conhecimento técnico, e 2) utilizar técnicas estatísticas para definição dos parâmetros de resistência ao cisalhamento.
Na Figura 1 é apresentado um fluxograma resumindo a metodologia proposta.
2.1 Caracterização Geotécnica dos Materiais
Inicialmente procede-se com o tratamento de todos os dados disponíveis, com o intuito de caracterizar o comportamento geológico-geotécnico do material apresentado nos ensaios triaxiais. Para isso, é realizado uma análise conjunta do comportamento mecânico em termos das tensões e deformações, e das trajetórias de tensão desenvolvidas para cada estado de tensão considerado nos ensaios triaxiais. Nesta etapa é importante caracterizar e separar os materiais e/ou corpos de prova que apresentam comportamento strain softening daqueles que apresentam comportamento strain hardening. Isso é crucial porque esses comportamentos mecânicos têm influências distintas na estabilidade e no desempenho dos materiais geotécnicos. O strain softening indica uma redução na resistência do material à medida que é deformado, enquanto o strain hardening indica um aumento ou manutenção da resistência. Portanto, compreender e distinguir esses comportamentos ajuda a interpretar corretamente os resultados dos ensaios e a aplicar as correlações geotécnicas de forma mais precisa.
Essa caracterização geotécnica permite identificar e descartar os ensaios que não reproduzem de maneira confiável o comportamento geotécnico esperado para o material ou que apresentam divergências entre os dados obtidos. Este processo é essencial para reduzir o impacto de erros de medição das fases anteriores e sua eficácia depende da experiência do profissional que realiza as análises. Como resultado parcial, obtém-se um conjunto de dados capazes de representar a heterogeneidade dos materiais.
Concluída a primeira etapa, são aplicadas técnicas estatísticas para proporcionar uma abordagem robusta no tratamento dos resultados dos ensaios geotécnicos. O objetivo é descrever os parâmetros dos materiais em termos das tendências centrais (valores médios) associados a um intervalo que permita representar com o nível de confiança desejado pelo profissional que realiza a análise (por exemplo, 95% de confiança).
2.2 Cálculo dos Parâmetros Médios
Os parâmetros médios de resistência dos materiais são definidos utilizando o modelo de regressão linear como procedimento estatístico. Este modelo é adequado, pois, é capaz de representar a relação entre variáveis através de uma envoltória (reta linear), considerando a dependência dos parâmetros estatísticos básicos, como média, desvio padrão das variáveis dependentes e independentes, além da correlação entre
elas. A equação dessa envoltória tem uma estrutura semelhante à apresentada na Equação 1.
Onde Y é a variável dependente, X é a variável independente, a é o intercepto da reta no eixo das ordenadas e b é a inclinação da reta.
Conforme apresentado por Fernandes (2016), a estrutura das envoltórias de resistência varia de acordo com o critério de resistência adotado na parametrização. Por exemplo, ao utilizar o Critério de MohrCoulomb, elas podem ser descritas em termos de tensões normais e cisalhantes. Por outro lado, ao parametrizar os materiais utilizando o diagrama de trajetória das tensões médias no espaço s’ e t, as variáveis podem ser descritas pelas tensões principais registradas nos ensaios triaxiais, conforme ilustrado de forma esquemática na Figura 2.
Para o Critério de Mohr-Coulomb, determinam-se os parâmetros: ângulo de atrito, que é a inclinação da reta no plano de rutura, e coesão, definida como o intercepto da reta no eixo das abscissas. Já para calcular esses parâmetros a partir do diagrama s-t, utilizam-se as Equações 2 e 3.
2.3 Intervalo de Confiança
Com o intuito de potencializar a escolha dos dados de entrada dos modelos geotécnicos, são definidas faixas de valores em torno do parâmetro médio – limite superior e limite inferior. Na estatística, conforme Martins e Domingues (2019), esses limites são denominadas intervalo de confiança (1-ϴ) ou (1- ϴ) %, em que ϴ está associado ao risco do erro de inferência estatística – ou seja, a probabilidade de o parâmetro não está contido no intervalo. A partir desse intervalo, é possível considerar a variabilidade inerente dos materiais naturais nas análises e extrapolar os resultados obtidos com o grau requerido de confiança. Esta abordagem é especialmente útil porque os resultados das campanhas de investigação geológico-geotécnicas geralmente são insuficientes para cobrir toda área da litologia estudada.
As seguintes premissas são consideradas para no cálculo dos limites superiores e inferiores:
• Definição o grau de confiança desejado de (1-ϴ) ou (1-ϴ) %;
• As amostras possuem distribuição aproximadamente normal. Assumir que o modelo de distribuição de probabilidade é gaussiana uma suposição aceitável, uma vez que grande parte dos parâmetros geotécnicos tendem a apresentar esse tipo de distribuição (Fenton e Griffiths, 2008).
• O desvio padrão real dos parâmetros de resistência é desconhecido. Os ensaios avaliados normalmente correspondem a uma pequena fração do grupo litológico amostrado, o que significa que os parâmetros estatísticos derivados desses dados são parâmetros que possuem uma boa aproximação do verdadeiro valor.
Com base nessas premissas e o número de amostras analisadas, têm-se:
• Se número de amostras for maior que 30, utiliza-se a distribuição normal padronizada, aplica-se a Equação 4.
• Senão, se o número de amostras for menor ou igual a 30, utiliza-se a distribuição t de Student, aplica-se a Equação 5.
Onde, m é o parâmetro médio. Z e t são, respetivamente, os coeficientes de confiança normal e t de Student, S é o desvio padrão e n é o número de amostras. A razão entre S e a raiz quadrada de n é o erro padrão.
A Figura 3 apresenta de forma esquemática os limites estabelecidos a partir das Equações 4 e 5.
Verifica-se uma maior similaridade entre as distribuições t e Z a medida que o n aumenta.
Considerando o Critério de Mohr-Coulomb, os limites definidos a partir dos parâmetros médios podem ser calculados pelas Equações 6 e 7.
Considerando o diagrama de trajetória das tensões, os limites definidos a partir dos parâmetros médios
podem ser calculados pelas Equações 8, 9, 10 e 11.
Por fim, são obtidas faixas de valores ao redor do parâmetro médio, conforme ilustrado na Figura 4.
3 – RESULTADOS
Para exemplificar a aplicação da metodologia, foram utilizados os resultados de ensaios triaxiais realizados em amostras coletadas de um material de fundação no quadrilátero ferrífero. No total, foram analisados 20 conjuntos de ensaios, totalizando 80 corpos de prova talhados e testados em diferentes níveis de tensão de confinamento.
Primeiramente, realizou-se uma avaliação geotécnica inicial para verificar se as amostras apresentavam o mesmo padrão de comportamento mecânico. Durante esse processo, conforme mostrado na Figura 5, foi observado que as amostras apresentavam padrão praticamente uniforma. Somado a isso, foram identificados e eliminados os corpos de prova que apresentavam divergências em relação ao conjunto de dados.
Após a determinação do conjunto de dados geotecnicamente adequados, aplicaram-se técnicas estatísticas para definir os parâmetros médios e os limites, considerando um intervalo de confiança de 98%.
Para essa análise, foi utilizado o modelo de regressão linear, obtido a partir de ferramentas computacionais.
Na Tabela 1 são apresentados os principais dados de entrada para estimativa dos parâmetros de resistência, obtidos a partir de análise de regressão linear. Na interpretação dos parâmetros utilizou-se a metodologia que utiliza o diagramas das trajetórias de tensões efetivas no espaço s’ e t.
Substituindo os dados da Tabela 1 nas Equações 2 e 3, obtêm-se os valores médios de coesão e ângulo de atrito dos materiais. Na Figura 6 é apresentada a envoltória de resistência obtida nas análises de regressão linear. Nela também são mostrados os dados dos corpos de prova desconsiderados da análise por não serem condizente com o comportamento mecânico geral do material (pontos vermelhos).
Na definição dos limites inferiores e superiores considerou-se as Equações 8, 9, 10 e 11 e um coeficiente Z da distribuição normal (n>30) para um nível de 98% igual a 2,33. O resultado obtido é apresentado na Figura 7.
Assim, a metodologia aplicada não apenas permitiu a caracterização precisa dos parâmetros médios de resistência dos materiais, mas também estabeleceu uma abordagem robusta para interpretar e definir os seus limites com alta confiabilidade estatística
4 – CONCLUSÃO
Na definição dos parâmetros de resistência ao cisalhamento dos solos é importante considerar as fontes de incertezas relacionadas a variabilidade inerente dos solos, aos erros de medição e as incertezas do modelo de transformação.
Nesse contexto, a metodologia proposta neste trabalho permite estabelecer os parâmetros de resistência com um grau de confiança adequado para representar o comportamento mecânico dos materiais. Além disso, com essa metodologia é possível definir os parâmetros de resistência de modo que não sejam restritos a um único conjunto de valores específicos, mas sim permitindo estabelecer uma faixa de variação desses parâmetros.
Assim, a aplicação de técnicas estatística em análises geotécnicas mostrou-se uma alternativa valiosa para lidar com essas incertezas e proporcionar definição mais confiável desses parâmetros.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem a BVP Geotecnia e Hidrotecnia pelo apoio dado na elaboração deste trabalho, bem como os familiares e amigos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Baecher G. B., Christian J. T. (2003) Reliability and Statistics in Geotechnical Engineering, John Wiley e Sons, New York, NY, USA, 619 p.
Campello, I. C., Ávila, J. P., Vecci, A. N., Machado, J. L. M (2019) Variabilidade de Propriedade
Geotécnicas. In XXXII Seminário Nacional de Grandes Barragens – Comitê Brasileiro de Barragens, Salvador.
Devore, J. L. (2018) Probabilidade e estatística para engenharia e ciências, 9. ed., Cengage, São Paulo, SP,
Brasil, 656p.
El-Ramly, H. (2001) Probabilistic analyses of landslide hazards and risck: bridging theory and practice
. Doctor of Philosophy thesis. Department of Civil and Environmental Engineering, University Of
Alberta, 420.
Fenton, G. A., Griffiths, D. V. (2008) Risk Assessment in Geotechnical Engineering. John Wiley e Sons, New York, NY, USA, 463p.
Fernandes, M. M. (2016) Mecânica dos solos – conceitos e princípios, Volume 1. Oficina de Textos, São Paulo, SP, Brasil, 448p.
Flores, E. A. F (2008) Análises probabilísticas da estabilidade de taludes considerando a variabilidade espacial do solo. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro/Puc-RIo, 178.
Martins, G. A., Domingues, O. (2019) Estatística geral e aplicada, 6. ed., Atlas, São Paulo, SP, Brasil, 342p. Sandoval, M. A. P. (2012) Análise determinística e probabilística da estabilidade de taludes. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil da Puc-Rio, Departamento de Engenharia Civil, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro/Puc-Rio, 194.
Phoon, K. K., Kulhawy, F.H (1999) Characterization of geotechnical variability. Canadian Geotechnical Journal, 36 (4), p. 612-624.